Ela entrou na sala, sentou em silêncio e disse: “Eu ainda me culpo todos os dias pelo que passei.” Não era culpa por algo que ela fez — mas por algo que sofreu. Aquilo que aconteceu com ela, anos atrás, ainda a definia. Seus relacionamentos, suas decisões, sua autoestima, tudo estava moldado por aquele episódio. Era como se, de alguma forma, o trauma tivesse sequestrado sua identidade.
Essa história é mais comum do que parece. Quantas vezes carregamos rótulos que não escolhemos? Quantas vezes nos identificamos com feridas, perdas, rejeições e passamos a viver como se aquilo fosse a nossa única verdade?
Aconteceu com você, sim. Mas não é você. A dor que te marcou não precisa ser a lente pela qual você enxerga o mundo — nem o limite que define até onde você pode ir. Porque no fim do dia, o que transforma a vida não é o que te fizeram. É o que você faz com o que te fizeram.
Esse artigo é um convite ao recomeço. Um chamado para deixar de se identificar com a ferida e começar a se conectar com a escolha. Vamos entender, juntos, o que significa sair do papel de vítima e assumir o papel de protagonista — sem negar a dor, mas sem entregar a ela o poder de nos definir.
Você não é o que te aconteceu: o que isso realmente significa
Essa frase pode soar como um clichê, mas carrega uma das verdades mais libertadoras do autoconhecimento: o passado influencia, mas não determina. O que você viveu, sim, te afetou. Talvez tenha te ferido profundamente. Talvez tenha te moldado em partes. Mas ainda assim, você continua sendo autor da sua trajetória.
O psiquiatra Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto e criador da Logoterapia, escreveu em seu livro “Em busca de sentido”: “Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas — escolher sua atitude em qualquer circunstância.” Frankl perdeu tudo. Mas escolheu o sentido. Escolheu a esperança. E com isso, não apenas sobreviveu, mas inspirou gerações.
Você não é a traição que sofreu. Nem o abandono que te deixou marcas. Você não é o abuso, nem o fracasso, nem o rótulo que colocaram em você. Esses eventos fazem parte da sua história — mas não precisam ocupar o centro dela.
Assumir isso não é fácil. Porque por mais doloroso que seja, muitas vezes é mais confortável se identificar com o que nos feriu do que encarar a responsabilidade de escrever um novo capítulo. A dor dá uma certa identidade. Mas a cura exige movimento. E todo movimento começa com uma escolha: não sou o que me aconteceu. Sou o que escolho fazer com isso.
O perigo de se identificar com a dor
A dor que vivemos precisa ser reconhecida. Ignorar ou minimizar o sofrimento apenas aprofunda a ferida. No entanto, há uma linha tênue entre honrar o que sentimos e nos fundir à dor de tal forma que ela passa a definir quem somos.
Quando você se identifica com a dor, começa a olhar para si através da lente do que sofreu. E isso pode limitar drasticamente sua capacidade de crescer, se relacionar, realizar. Você passa a agir com base no medo de ser ferido novamente. A criatividade, a ousadia, a liberdade — todas ficam sufocadas pelo receio de reviver antigos traumas.
Muitos passam anos, ou até décadas, presos nesse ciclo. Repetem os mesmos padrões, atraem os mesmos conflitos, sabotam as mesmas oportunidades. Não por falta de capacidade, mas por estarem inconscientemente agarrados a uma identidade construída em cima da dor.
É como alguém que tropeça e, ao invés de levantar, monta acampamento no chão. Com o tempo, começa a acreditar que aquele chão é sua casa. E esquece que há vida além da queda.
O psicólogo Carl Jung dizia: “Até você se tornar consciente, o inconsciente vai dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino.” Enquanto não nos libertarmos da identificação com o sofrimento, continuaremos repetindo histórias antigas, chamando-as de azar, carma ou realidade imutável.
Romper com isso exige um ato radical de compaixão e coragem: olhar para a dor, reconhecê-la, mas não se confundir com ela. Aconteceu com você, sim — mas você pode escolher ser mais do que isso.
Exemplo real: a história de Andreia
Andreia, vou chamá-la assim, foi abusada na adolescência. Durante anos, carregou vergonha, raiva, culpa. Criou um escudo emocional que afastava todos ao seu redor. Até que um dia, em uma roda de escuta com outras mulheres, pela primeira vez, contou sua história em voz alta.
A partir dali, decidiu: “Isso aconteceu comigo, mas não define quem eu sou.”
Buscou terapia, estudou sobre traumas, se formou em psicologia. Hoje, lidera um projeto de acolhimento para vítimas de violência sexual. Ela escolheu transformar sua dor em serviço. Sua ferida virou ponte.
A força está na escolha: como mudar a narrativa
Toda transformação começa com uma escolha. E escolher mudar a forma como você se relaciona com o seu passado não significa apagá-lo — significa ressignificá-lo. Você não nega o que aconteceu, mas decide que o acontecimento não terá mais o poder de controlar sua vida.
Escolher transformar a dor em propósito não é um processo imediato. Requer presença, consciência e, muitas vezes, apoio. Mas é possível. E quando acontece, muda tudo. Porque quando você muda a narrativa, você muda a energia que carrega — e passa a escrever uma história com mais liberdade e menos peso.
A terapeuta e escritora Clarissa Pinkola Estés, autora de “Mulheres que correm com os lobos”, afirma que os acontecimentos da vida não são para nos destruir, mas para nos transformar. É essa transformação que marca a virada de chave: quando você deixa de perguntar “por que isso aconteceu comigo?” e começa a perguntar “o que posso aprender com isso?”.
Essa escolha é empoderadora porque devolve o protagonismo para as suas mãos. Você pode não ter escolhido a dor, mas pode escolher o que fazer com ela. Pode escolher buscar ajuda. Pode escolher desenvolver novas habilidades. Pode escolher ser mais gentil consigo. Pode escolher não repetir o ciclo.
E quando essa escolha se torna prática — nos pensamentos, nas atitudes, nos relacionamentos — você começa a se libertar das amarras invisíveis que te prendiam ao passado.
Como reescrever sua história sem apagar seu passado
Reescrever sua história não significa negar o que aconteceu, muito menos fingir que a dor nunca existiu. Significa olhar para tudo o que viveu com mais maturidade emocional, sem carregar culpas que não são suas, nem prender-se a narrativas que já não te representam.
A importância de reescrever sua história está em mudar o ponto de vista — sair do lugar de vítima impotente e assumir o papel de alguém que aprendeu, cresceu, sobreviveu e agora tem algo a dizer sobre isso. É esse movimento que faz o jogo virar: quando você compreende que sua trajetória não é algo que te prende, mas um solo fértil de onde você pode florescer.
Reescrever é transformar a dor em potência. É encontrar sentido no meio do caos. É fazer das quedas um impulso para voar mais alto. Quando você faz isso, muda não apenas sua relação com o passado — mas também com o presente e com o futuro.
Reescrever sua narrativa te liberta da repetição inconsciente. Te ajuda a fazer escolhas mais alinhadas com quem você é hoje, e não com quem foi no momento da dor. E isso, por si só, já é uma revolução interna. Considere esses pontos:
Reconheça a dor — sem se afundar nela
Você não precisa fingir que não doeu. Mas precisa parar de alimentar a ferida. O que te aconteceu foi real, mas não precisa ser eterno. Reconheça a dor como um capítulo, não como o livro inteiro.
Entenda que o passado não precisa ditar o seu futuro
O que te feriu não precisa continuar te controlando. Você pode decidir se tratar com mais compaixão do que fizeram com você. Sua história muda quando você muda a forma de narrá-la para si.
Mude a linguagem interna
Palavras como “eu sou assim porque…” reforçam identidades baseadas na dor. Experimente trocar por: “mesmo com isso, eu posso…”. A linguagem molda o pensamento, e o pensamento molda a realidade.
Reescreva a narrativa da sua vida
Pegue papel e caneta e escreva sua história como se fosse uma protagonista. Não apague as cicatrizes — realce a sua força em superá-las. Isso muda sua energia e inspira outras pessoas.
Peça ajuda
Nenhuma jornada profunda precisa ser solitária. Psicólogos, terapeutas, grupos de apoio, espiritualidade — todos são recursos legítimos para transformar dor em aprendizado e libertação.
Dicas práticas para sair do papel de vítima e assumir o de protagonista
1. Nomeie seus sentimentos com precisão
“Estou frustrada”, “me sinto rejeitada”, “tenho medo”. Nomear suas emoções é o primeiro passo para separá-las da sua identidade. Você sente — mas você não é o que sente.
2. Faça perguntas poderosas
Troque o “por que isso aconteceu comigo?” por:
- “O que isso veio me mostrar?”
- “Como posso crescer com isso?”
- “O que posso fazer agora?” Essas perguntas mudam sua perspectiva e te movem da dor para a ação.
3. Crie rituais de liberação
Escreva cartas que não serão enviadas. Queime papéis com palavras que você quer deixar para trás. Crie pequenos rituais simbólicos de fechamento e liberação emocional.
4. Cerque-se de pessoas que acreditam na sua versão mais inteira
Evite ambientes que reforçam sua dor ou reforçam sua autoimagem ferida. Proximidade também é cura. Esteja com quem acredita no seu florescimento.
5. Torne-se mentora da sua própria jornada
Compartilhar sua história com quem está começando a trilhar o mesmo caminho pode te curar mais do que você imagina. Ensinar o que aprendeu é consolidar sua força.
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Fé e filosofia: o que nos ensinam sobre escolhas conscientes diante da dor
Na Bíblia, há inúmeros relatos de pessoas que transformaram adversidades em propósito. José, vendido pelos próprios irmãos e injustamente preso, escolheu o perdão e a liderança. No final de sua trajetória, diz: “Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o transformou em bem” (Gênesis 50:20). Essa é a essência de quem entende que o que importa não é o que acontece — mas o que se escolhe fazer com isso.
O apóstolo Paulo, mesmo perseguido, preso e fragilizado, escreveu cartas repletas de esperança. Em Filipenses 4:11-13, ele afirma: “Aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância… Tudo posso naquele que me fortalece.” Essa postura não nega a dor, mas a transcende por meio da consciência e da fé.
Na filosofia estoica, Epicteto — que viveu como escravo — ensinava que a liberdade verdadeira não está em controlar o que acontece, mas em escolher como reagimos. Marco Aurélio, em suas Meditações, escreveu: “Você tem poder sobre sua mente — não sobre eventos externos. Perceba isso, e encontrará força.”
Ambos os caminhos, bíblico e filosófico, convergem para o mesmo princípio: a escolha consciente é uma ferramenta de redenção. Não precisamos nos tornar reféns do passado. Podemos escolher transformar cada ferida em sabedoria, cada perda em expansão, cada silêncio em escuta interior.
A dor não define você. Suas escolhas, sim.
Minha história também tem cicatrizes
Eu mesmo já vivi momentos em que me senti derrotado. Profissionalmente, emocionalmente, espiritualmente. Houve épocas em que perdi contratos, pessoas, sonhos. E nesses momentos, a vontade de desistir parecia sedutora.
Mas uma pergunta sempre me salvava: “O que eu posso fazer com isso?”
Hoje, ao olhar para trás, percebo que meus maiores aprendizados vieram das minhas maiores crises. Escrevo, atendo, ensino — porque sei o que é cair. E porque também sei o que é se levantar.
Ainda estou me lapidando. Mas todos os dias escolho transformar dor em propósito. E convido você a fazer o mesmo.
Você é o que escolhe fazer com sua história
Você não é o que te aconteceu. E essa não é apenas uma frase bonita — é um lembrete de que, apesar da dor, ainda existe escolha. Ainda existe caminho. Ainda existe reconstrução.
Viver não é apagar o passado, mas escolher o que fazer com ele. É entender que suas cicatrizes são marcas de superação, não de derrota. Que seus tombos podem ser transformados em passos mais firmes. E que o que você escolhe fazer com a sua dor determina a qualidade da vida que você vai construir a partir dela.
Você é muito mais do que seus traumas. É a pessoa que continua tentando, que busca entendimento, que quer se libertar do que já não cabe mais. E isso é lindo. Isso é força.
Hoje, faça um pacto consigo mesma: “Eu não sou o que me feriu. Eu sou quem escolhe se levantar, florescer e seguir.”
Se esse artigo tocou você, envie para alguém que também precisa lembrar que há vida além do que nos machuca. Porque o mundo precisa de mais pessoas despertas para o poder da escolha — e menos aprisionadas pelas sombras do passado.